Entrevista de Ivan Pinheiro

Entrevista com Ivan Pinheiro, Secretário Geral do PCB - Partido Comunista Brasileiro - divulgada na Palestina e em alguns sítios do Oriente Médio em árabe (clique no link) e em português (abaixo), numa iniciativa da FPLP (Frente Popular pela Libertação da Palestina).
http://www.alfajrnews.net/News-sid-a-a-a-a-aiae-a-a-aa--a-i-i-a-iai-i-ae-iaei--24233.html

1 - O que aconteceu com o Partido Comunista Brasileiro, em 1992?

Em 1992, a maioria do Comitê Central do PCB tentou liquidar o Partido. Eles se aproveitaram dos problemas da construção do socialismo, dos erros que foram cometidos naquela experiência, cujo saldo é positivo, para tentar acabar com o nosso partido. Mas um terço do Comitê Central e grande parte da militância resolveram manter o PCB. Passamos tempos difíceis, na reconstrução revolucionaria do Partido. Tivemos que recuperar nosso registro e nossa legenda juridicamente, refazer toda a estrutura material do partido. Hoje estamos fazendo 18 anos dessa reconstrução.

2 - Desde 1992 até o XIV Congresso, como o companheiro relata a reconstrução do Partido Comunista Brasileiro? O camarada acha que o Congresso atingiu seus objetivos principais?

O XIV Congresso Nacional do PCB (que contou com a prestigiosa presença da FPLP), a nosso ver, marca a consolidação desse processo de reconstrução e cria condições para o PCB crescer com qualidade. Achamos que se não cometermos erros, se mantivermos essa coerência política que temos mantido nos últimos anos, o PCB pode ser um estuário dos revolucionários brasileiros. É claro que esta reconstrução foi um processo difícil nos primeiros anos. A grande unidade que tínhamos no início da década de 90 era manter o PCB. Mas isso não era suficiente; não se tratava apenas de manter o partido pela sua história, como se fosse um patrimônio histórico. Quando começamos a discutir para o que servia o partido, aí começaram a aparecer algumas divergências. Só no fim da década passada é que começa a se manifestar no PCB um consenso hegemônico em torno de algumas questões que marcam esse momento que nós estamos vivendo, e que eu caracterizaria com dois grandes temas: a revolução socialista e o partido leninista.

3 - Onde estão as dificuldades que impedem a unificação dos partidos da esquerda brasileira?

A divisão dos partidos de esquerda não há só no Brasil, é uma divisão que perpassa toda a esquerda mundial, em torno de uma velha discussão entre reforma e revolução. Um partido de esquerda determina sua linha política em função de como ele vê a sociedade. No nosso caso, avaliamos que o fator mais importante desta divisão é a localização de qual é a contradição fundamental de uma sociedade. Nós achamos que, no Brasil, a contradição fundamental da sociedade é entre o capital e trabalho, mas há alguns setores de esquerda que acham que é entre a nação brasileira (incluída a burguesia) e o imperialismo. Daí derivam as divergências, que têm a ver com a possibilidade ou não de fazer aliança com a burguesia. No nosso caso, acreditamos que não existe possibilidade de aliança com a burguesia brasileira.

4 - O presidente Luís Inácio Lula da Silva, considerado da esquerda, como o PCB avalia o governo de Lula referente à política interna e a política externa?

Na nossa avaliação, Lula nunca foi de esquerda; Lula é um democrata, um social liberal. Mas nunca enganou ninguém; quando tomou posse disse que iria fazer um espetáculo do crescimento capitalista. Ele é um sindicalista de resultado que leva isso para o exercício da presidência da república. Na realidade, não existe meio termo: ou se é socialista ou capitalista. Por exemplo, a política econômica do governo Lula é idêntica praticamente à do FHC. Lula nomeou como presidente do Banco Central Henrique Meirelles, que era presidente do Banco de Boston, um representante do capital. Ele foi nomeado na frente do Bush, antes da posse do Lula. A política externa do governo Lula é a política externa do estado capitalista brasileiro, que chamam de pragmatismo responsável. O centro desta política é fazer o capitalismo brasileiro se transformar numa potência mundial, uma potência capitalista mundial. Já que estamos falando em uma entrevista que tem como público principal nossos irmãos palestinos e do Oriente Médio em geral, um bom exemplo da postura do governo brasileiro na política externa foi na questão da invasão sionista à faixa de Gaza. Lula ficou em cima do muro, fazendo declarações ora para um lado, ora para outro.

5 - Na América Latina, presenciamos muitos fatos importantes, entre eles a chegada de várias personalidades populares ao poder em vários países como Venezuela e Bolívia, além do Brasil, Equador, Chile, Argentina, Paraguai. Como o companheiro analisa este avanço da esquerda na América Latina?

Realmente há um avanço progressista na América Latina, um avanço grande e importante, positivo, mas sujeito a retrocessos e contradições. E é desigual também, com relação ao enfrentamento ao imperialismo, ao ritmo, à qualidade e intensidade das mudanças sociais. Desse ponto de vista, podemos dividir a América Latina em três grupos: um primeiro grupo é mais à esquerda, mais representativo dessas mudanças sociais, como é o caso de Cuba, que inspirou e possibilitou outros processos revolucionários. Temos aí também, neste grupo, os casos da Venezuela, Bolívia e, em menor medida, do Equador. Por outro lado, tem um grupo de países que nós chamamos de governos sociais liberais, especialmente no cone-sul do Brasil, e ai nós estamos falando de Brasil, Chile, Paraguai, Uruguai e Argentina. São experiências reformistas, mas dentro da lógica do capital. Esses governos não têm nenhum interesse em participar de uma articulação continental antiimperialista, como é o caso da ALBA. E, finalmente, na América Latina tem três países cujos governos são alinhados ao imperialismo americano: México, Peru e Colômbia. Foram exatamente estes três países que firmaram acordos bilaterais com os Estados Unidos, os chamados TLCs (Tratados de Livre Comércio). O mais perigoso deles é o governo da Colômbia, o governo Uribe, que é um fascista, que é um verdadeiro narcotraficante, que está transformando a Colômbia numa grande base militar ianque, uma situação que o mundo árabe bem conhece. A Colômbia está virando, para a América Latina, o que representa Israel para o Oriente Médio, ou seja, uma grande base militar terceirizada do imperialismo norte-americano.

6 - As 7 bases militares americanas foram construídas na Colômbia recentemente, além das outras bases no Paraguai e Suriname e em vários países da América Latina. O companheiro pode relatar qual é o interesse do imperialismo americano na América Latina?

É importante registrar que a América Latina passa por um momento de muita tensão. Há três ou quatro anos atrás, quem diria que a América Latina poderia se transformar numa região com riscos de conflitos militares? O imperialismo está prestando mais atenção na América Latina, preocupado com as mudanças que foram aos poucos se implantando; e resolveram tentar dar um basta nessas mudanças. E estão jogando pesado. Reativaram a “Quarta Frota”, que estava desativada desde a segunda guerra mundial. E é uma frota que percorre os mares da América do Sul, Central e Caribe, armada até os dentes. Estão criando mais setes bases militares na Colômbia. O golpe em Honduras já é parte desta agressividade: tem o DNA, as pegadas, as digitais do imperialismo americano, antes, durante e depois. Eles fizeram todo um teatro, de que não estavam por trás do golpe, mas o mundo, pelo menos o mundo mais bem informado, mais politizado, já sabe que aquele foi um golpe articulado pela CIA, pelo Departamento de Estado. O problema dos Estados Unidos aqui na América Latina não é apenas a guerra, porque eles precisam de guerra, para poder vender seus produtos, a sua grande indústria hoje é a indústria bélica, o que nós chamamos de complexo industrial militar. Eles têm três objetivos na América Latina, como em geral no mundo todo: fazer guerras para vender produtos do complexo industrial militar, tentar barrar o processo de mudanças sociais e, em terceiro lugar, se assenhorar, saquear as grandes riquezas naturais que a região tem, mesmo depois de quatro séculos de exploração, muito bem expostos por Eduardo Galeano, no Livro as “Veias Abertas da América Latina”. Eles sabem que aqui ainda há muita riqueza, petróleo e gás em abundância, reservas de água potável, biodiversidade, muitos outros recursos minerais, apesar de tudo que os espanhóis, os portugueses e depois os ingleses e os próprios americanos já saquearam.

7 - Durante 2 décadas, vários acontecimentos mundiais aconteceram, que deixaram os Estados Unidos dominando o mundo, praticando, julgando e punindo seus inimigos, conforme seus interesses e objetivos. Sem o sistema Socialista, sem a União Soviética e com a nova ordem mundial, a globalização, ocorreram mais guerras, como no Afeganistão e no Iraque. Como o Partido Comunista Brasileiro entende as mudanças e estas guerras?

A queda da URSS foi uma derrota para os trabalhadores do mundo todo. Até então o mundo era bipolar, ou seja, havia duas potências, os Estados Unidos e a URSS, que disputavam a hegemonia do mundo em condições de igualdade e isso permitia à URSSS impor uma correlação de forças que garantia, dessa forma, um pouco de paz, paz no sentido da luta antiimperialista, porque a URSS deu solidariedade a muitos países na luta contra o imperialismo. A queda da URSS provocou também um enfraquecimento dos partidos comunistas e de esquerda, dos sindicatos. Durante quase duas décadas, prevaleceu um mundo unipolar, ou seja, um mundo que só tinha um pólo, um pólo capitalista, hegemonizado pelos EUA. A falta da URSS provocou, por exemplo, a perda de direitos trabalhistas no mundo todo e o esvaziamento do papel do Estado, as privatizações. Mais cedo do que imaginávamos, porém, estão surgindo outros pólos no mundo, mas é bom registrar, para que não se tenha no campo da esquerda nenhuma ilusão, que se trata ainda de uma multipolaridade no campo do capital. Mas há também a crise do capitalismo e uma tendência de recuperação do poder de força dos partidos comunistas, dos sindicatos, o acirramento da luta de classes; enfim, há um ambiente hoje mais propício para a esquerda no mundo. Infelizmente, o capitalismo ainda tem bala na agulha, ainda tem gordura para queimar. Apesar de os EUA virem gradualmente perdendo um pouco de sua hegemonia no campo político, no campo ideológico e até econômico, não podemos nos iludir, porque no campo militar o mundo é quase unipolar ainda.

8 - Desde 1947 a ONU, em sua resolução 181, definiu a partilha da Palestina, e o voto do Brasil foi decisivo para a criação do Estado de Israel e para a aprovação das resoluções da Assembleia Geral, que não obrigam as partes as aceitarem. Como o PCB vê o voto de Oswaldo Aranha, e qual é a sua visão sobre o conflito daquele ano?

A meu ver, a decisão da ONU, em 1947, pela criação do Estado de Israel em terras palestinas – em que alguns dos países votantes talvez considerassem a possibilidade de uma coexistência pacífica entre os povos judeu e palestino – acabou se mostrando trágica e desastrosa. Se o Estado de Israel fosse criado em outra região do mundo, como chegou a ser aventado pelos próprios judeus no início do século XX, o sionismo teria dificuldade de formular a ideologia da “terra prometida”, que embasa sua agressividade. A tendência talvez fosse um estado laico. Esta Resolução da ONU foi influenciada por alguns fatores, inclusive conjunturais, como a solidariedade mundial frente às atrocidades cometidas pelos nazistas, no que ficou conhecido como holocausto, cuja existência não se pode negar. Antes da decisão da ONU, a partilha da Palestina já vinha sendo negociada e implementada pela burguesia sionista, com o apoio da Inglaterra e dos Estados Unidos, estimulando o fluxo de judeus para o território palestino, ou seja, uma ocupação gradual e conflituosa, que já encontrava a resistência dos palestinos. A decisão da ONU, em verdade, veio “legalizar” uma ocupação de fato. Por mais que a antiga União Soviética (que também votou a favor) tivesse ilusões de ajudar a criar um Estado laico e progressista, vendo o grande número de judeus pobres que migravam para terras palestinas, dentre eles muitos comunistas, a criatura da ONU de 1947 acabou sendo hegemonizada pelo sionismo e se transformando numa cunha do imperialismo no Oriente Médio. Ocorre que os ideólogos sionistas supervalorizam o holocausto, como se só os judeus tivessem sido vítimas de atrocidades, manipulando a história e inclusive tentando apagar o papel decisivo que principalmente a URSS e também outros países tiveram na derrota do nazifascismo. Não teve povo que teve mais perdas na Segunda Guerra que o povo russo. E a batalha decisiva se travou em seu território. E o incrível é que valorizam tanto o holocausto provocado por Hitler, que se sentem no direito de cometer qualquer agressão ao povo palestino. E ainda não aceitam que chamemos a tragédia palestina de holocausto palestino, que é como devemos caracterizar, até para chamar a atenção do mundo para o tema. Há décadas o sionismo usurpa as terras dos palestinos, reprime e prende os que resistem, destrói sua cultura, promove uma limpeza étnica nos territórios ocupados. São mais de 11 mil presos políticos e mais de 4 milhões de refugiados, vivendo precariamente nas fronteiras da Síria, do Líbano e da Jordânia.

9 - A ONU sempre teve papel importante em solucionar vários conflitos. Como vê o papel da ONU referente ao conflito palestino-israelense?

A ONU já teve um papel mais importante quando existia a URSS, que tinha um peso muito grande no Conselho de Segurança, inclusive poder de veto. Com a queda da URSS e também com a abertura da economia chinesa, a ONU já não é mais a mesma. Por mais que a China ainda mantenha alguns fundamentos socialistas, o fato de ter grande peso no mercado capitalista mundial limita sua atuação mais independente no âmbito internacional. Hoje a ONU, apesar de algumas contradições e apesar de suas instâncias, que reúnem o conjunto dos países em geral, terem posições mais progressistas, esbarra sempre num Conselho de Segurança que é hegemonizado pelo imperialismo. Desde sua fundação, Israel tem praticado massacres e agressões contra o povo palestino, muitos condenados pela ONU, que efetivamente não teve nenhum poder para punir Israel em absolutamente nada, em função do veto de seu parceiro e protetor, o imperialismo norte-americano. Na faixa de Gaza, Israel praticou vários crimes contra a humanidade e acaba de ser condenado pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU e, no entanto, o Conselho de Segurança da ONU não faz nenhuma retaliação a Israel.

10 - Durante mais de 60 anos, Israel praticou massacres contra o povo palestino, considerados crimes contra a humanidade, começando pelo massacre de Deir Yassin em 1948, onde foram assassinados mais de 110 palestinos da Aldeia de Deer Yassin. Lembrando Sabra e Chatila, em 1982, mais de 2000 palestinos foram assassinados brutalmente. Até seus últimos crimes recentemente na Faixa de Gaza, o Relatório de GoldenStone confirmou que Israel praticou massacres contra a humanidade na Faixa de Gaza. O companheiro, como advogado, o que acha que deveria se fazer, e qual a solução para levar os criminosos para os tribunais internacionais? E que atitude as forças da esquerda brasileira deveriam assumir para levar os criminosos de guerra aos tribunais?

Eu creio que todos os democratas, os socialistas de todo o mundo devem continuar uma campanha intensa no sentido de levar para os tribunais internacionais os criminosos de guerra de Israel. Infelizmente, não acho que o Estado de Israel esteja pronto para alcançar uma paz no Oriente Médio. Pelo contrário, o que temos visto é o aumento da agressividade sionista com a expansão dos assentamentos e com o “muro da vergonha”. Com a invasão de Gaza, o cerceamento da liberdade e a prisão de milhares de militantes palestinos, o que Israel tem feito é tentar inviabilizar o futuro Estado palestino, inclusive com a ocupação territorial, a separação de Gaza da Cisjordânia, com assentamentos irregulares e ilegais. O que ocorre é que Israel, com essa política, acaba inviabilizando na prática a ideia da coexistência pacífica (dois povos, dois Estados), simplesmente porque está desfigurando e acabando com o território palestino original. Para se ter uma ideia da resistência de Israel aos direitos do povo palestino, Israel não aceita nem a proposta rebaixada da Autoridade Nacional Palestina de criar um Estado palestino descontínuo, apenas na Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental. Além de afirmar que “Jerusalém é indivisível”, Israel ainda ameaça retaliar os palestinos se este Estado, limitado e descontínuo, for estabelecido. As forças de esquerda, democráticas e progressistas brasileiras devem reforçar a campanha mundial para levar os criminosos de guerra aos tribunais internacionais, uma das formas de evitar a repetição dessas atrocidades. Os Comitês de Solidariedade ao Povo Palestino têm que se reproduzir em todos os Estados brasileiros e se fortalecer através da unidade de ação, para criar as condições para a realização, no momento oportuno, de um grande congresso ou conferência nacional de solidariedade à Palestina.

11 - Qual é a mensagem, como dirigente do PCB, o camarada manda para o povo palestino e os povos árabes?

Nossa mensagem vai no sentido de dizer para o povo palestino e para todos os povos árabes que, aqui na América Latina, inclusive no Brasil, há uma grande simpatia, uma grande solidariedade à luta desses povos, que devem perseverar, pois a vitória será certa. Mas devemos nos preocupar com o recrudescimento da agressividade sionista e imperialista, pois quanto mais se agravar a inevitável crise do capitalismo, mais recorrerão a guerras de baixa, média e grande intensidade, golpes de Estado e todas as formas de truculência política e militar, para tentar frear a resistência dos povos e saquear suas riquezas.