Muros, mortos e mentiras

Jorge Cadima*

"O adeus ao comunismo? Provocou um milhão de mortos". O título não é de uma publicação comunista. É de um jornal do grande capital italiano, o Corriere della Sera (9.11.09), que noticia um estudo de professores de Oxford e Cambridge, publicado na conceituada revista médica britânica The Lancet. "Baseados nos dados da Unicef, de 1989 a 2002», os autores afirmam que «as políticas de privatização em massa nos países da União Soviética e na Europa de Leste aumentaram a mortalidade em 12,8% […] ou seja, causaram a morte prematura de um milhão de pessoas".

"Morreu-se mais lá onde se adotaram as “terapias de choque": na Rússia, entre 1991 e 1994, a esperança de vida diminuiu em 5 anos». Conclusões de estudos anteriores foram ainda mais graves. Como escreve o Corriere della Sera, «A agência da ONU para o desenvolvimento, a UNDP, em 1999, contabilizou em 10 milhões as pessoas desaparecidas na telúrica mudança de regime, e a própria UNICEF falou em mais de 3 milhões de vítimas». Foi para celebrar estes magníficos resultados que o estado-maior do imperialismo se reuniu em Berlim, com pompa, circunstância e transmissões televisivas infindáveis, numa comemoração do regime em torno dos 20 anos da contrarrevolução no Leste Europeu.

O balanço da restauração do capitalismo é ainda mais grave. Mesmo sem falar no sofrimento dos vivos do Leste – o alastrar de pobreza extrema, dos sem-abrigo, da prostituição, da dependência aos tóxicos ou da emigração em massa para sobreviver – os efeitos das contrarrevoluções de 1989-91 fizeram-se sentir em todo o planeta. As «terapias de choque» de um imperialismo triunfante e ávido por reconquistar as posições perdidas ao longo do Século XX tornaram-se uma mortífera realidade global e tiveram, em 2008, o seu corolário inevitável: a maior crise do capitalismo desde os anos 1930. Uma escalada de mortíferas guerras foram ao mesmo tempo desencadeadas pelo imperialismo, liberto do contrapeso dos países socialistas. Muitas centenas de milhares de mortos (mais de 650 mil só no Iraque, segundo outro estudo publicado em 2006 na Lancet) são o fruto «da queda do Muro» no Golfo, na Iugoslávia, no Afeganistão, no Iraque, no Líbano, na Palestina, e agora no Paquistão – para não falar das agressões "menores".

E foram acompanhadas pelo "Gulag" de prisões secretas dos EUA espalhadas por todo o mundo, no qual desaparecem milhares de pessoas raptadas e torturadas por um sistema de repressão acima de qualquer controlo. Os dirigentes do «mundo livre» que se juntaram, ufanistas, em Berlim, são todos responsáveis por este banho de sangue e repressão. Podem mostrar-se de cara simpática e tratarem-se amigavelmente por Hillary, Angela, Nicolas, Bill, Tony, Obama, etc. Mas das suas mãos escorre o sangue e sofrimento de milhões de pessoas em todo o planeta – de Peshawar a Guantanamo (que continua aberta), de Abu Ghraib às Honduras (que continua sob controle dos golpistas e a indiferença da comunicação social «democrática»), das «maquiladoras» mexicanas aos campos de refugiados palestinos (que continuam – há 60 anos – à espera do seu Estado).

Pelo "Gulag" democrático-ocidental passou Khalid Shaikh Mohammed, que vai agora a julgamento nos EUA, acusado de ser o responsável primeiro do 11 de Setembro (mas não era o Bin Laden?). Segundo o New York Times (15.11.09), "foi submetido 183 vezes à técnica de quase afogamento chamada 'waterboarding'". O jornal afirma que ele também se diz responsável "por uma série de conspirações", como "tentativas de assassinato do Presidente Bill Clinton, do Papa João Paulo II e as bombas de 1993 no World Trade Center".

Mais um afogamento simulado e confessaria também ser responsável pelo aquecimento global e o sumiço de D.Sebastião em Alcácer-Quibir. Mas atente-se na vida do acusado: paquistanês, criado no Kuwait e diplomado por uma universidade americana, viajou, após os estudos, «para o Paquistão e o Afeganistão, a fim de se juntar aos combatentes mujahedines que, nessa altura, recebiam milhões de dólares da CIA para lutar contra as tropas soviéticas» (NYT, 15.11.09). Afeganistão hoje ocupado e onde "segundo responsáveis da OTAN […] um terço dos polícias afegãos são toxicodependentes» (Sunday Times, 8.11.09). Admirável mundo novo que a "queda do Muro" pariu!



* Jorge Cadima é Professor universitário e analista de política internacional

Avante nº 1.877 de 19 de Novembro de 2009
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