Salário mínimo e a política mínima do governo Dilma

Renato Nucci Junior
(Membro do Comitê Central do PCB)



A polêmica em torno do reajuste do salário mínimo traz importantes elementos para análise sobre o caráter e as predisposições políticas e econômicas do governo Dilma. Este deu por encerradas as negociações com as centrais sindicais do próprio campo governista (CUT, Força Sindical, CTB, CGTB, NCST e UGT), encaminhando o PL 382/11 com a proposta de R$ 545,00 para o novo salário mínimo. Para obter a vitória o governo usou todos os recursos possíveis. Atribuiu ao deputado federal Vicentinho (PT/SP), ex-presidente da CUT, a relatoria do projeto, usando um parlamentar considerado porta-voz dos trabalhadores para dar legitimidade ao mixo reajuste oferecido. Porém, reverberando a nula disposição do governo Dilma em negociar qualquer valor acima do apresentado, o “nobre” parlamentar anunciava que “O governo quer R$ 545 e diz que não te margem para negociar”.

Um dos recursos utilizados pelo governo para a sua vitória avassaladora na Câmara, também foi obtido na base de muitas ameaças. Aos parlamentares rebeldes que não seguissem a orientação do governo anunciavam-se graves punições, como veto a indicação de correligionários e cupinchas para cargos de confiança e corte nas indicações de verbas feitas no Orçamento. O resultado não poderia ter sido outro, a não ser a vitória do governo na Câmara. As emendas feitas ao PL 382/11 pelo PSDB, propondo piso mínimo de R$ 600,00, foi rejeitada por 376 votos. Já a emenda do DEM, de reajustar o mínimo para R$ 560,00, foi rejeitada por 361 votos. Outra emenda ao projeto foi apresentada pelo PPS, propunha retirar do texto do PL permissão para o Executivo baixar por decreto os valores do salário mínimo entre 2012 e 2015. Isso significa que nos próximos anos o salário mínimo não será objeto de debates no Congresso, deixando o Executivo mais à vontade para impor os valores por ele definidos, sem necessidade de negociar com o movimento sindical e com os parlamentares, que por sua função se mostram mais permeáveis à pressão popular.

Truculência e intransigência a favor do capital


O estilo truculento de Dilma ao longo de todo o debate em torno do reajuste do salário mínimo foi saudado pela burguesia como demonstração de compromisso do novo governo com a chamada “estabilidade econômica” e com a “responsabilidade fiscal”. Em certa medida, sua intransigência quanto ao valor de R$ 545,00 pode ser interpretada mais como uma decisão política do que propriamente técnica, dando um sinal claro às frações hegemônicas da burguesia da disposição do novo governo em não ceder às pressões ditas “demagógicas” que ameacem a estabilidade da economia e o princípio do rigor fiscal. O objetivo é o de afastar qualquer dúvida que possa pairar quanto aos objetivos do governo, amalgamando ainda mais o apoio de frações da burguesia. Para tanto, uma boa dose de intransigência e truculência precisa ser usada, como sinal de um governo forte e responsável imune aos interesses mesquinhos. No mesmo sentido, a decisão do governo Dilma de levar o tema para votação no Congresso, onde obteve vitória folgada na Câmara com expressiva margem de voto contra as emendas apresentadas pelos partidos da oposição burguesa (PSDB, DEM, PPS), serviu como demonstração de força tanto para estes partidos, como para demonstrar às frações hegemônicas da burguesia sua força política através de sua capacidade de formar uma ampla base de apoio parlamentar.

Essa maneira de conduzir o debate em torno do reajuste do mínimo foi saudada pelo Estadão, notório representante no meio jornalístico do pensamento burguês mais conservador e reacionário. Em seu editorial de 10 de fevereiro, Dilma foi parabenizada por sua “demonstração de autoridade e coerência política”, ao seguir a regra de reajuste do mínimo acertada com as centrais governistas em 2007. Pelo acordo, o aumento deve levar em conta a inflação do ano anterior mais a média do PIB dos dois anos anteriores. Dilma teria demonstrado na prática, segundo o Estadão, seu compromisso com os dogmas da estabilidade econômica e do rigor fiscal. É importante registrar que o Projeto de Lei 382/11 aprovado pela Câmara, inclui tais regras como parâmetro legal para reajustar o mínimo nos próximos anos. Regras que, como analisaremos adiante, são ruins para uma grande massa dos trabalhadores e aposentados cujo salário se referencia pelo aumento do mínimo.

Lula deixou as centrais na mão

As centrais sindicais, por sua vez, em sua peleja contra a equipe econômica do novo governo, buscaram reforço em Lula, tentando arrancar do ex-presidente uma mísera declaração de apoio às suas reivindicações. O objetivo era o de utilizar o peso político de Lula com sua enorme popularidade, como forma de constranger Dilma, tentando mostrar que sua sucessora estaria se desviando do bom caminho traçado pelo ex-presidente. A intenção era a de apresentar diferenças entre os governos de Dilma e de Lula, como se aquele representasse frente a este, no caso dos reajustes do salário mínimo, uma ruptura em sua política de valorização.

Mas a tática se mostrou furada. Do Senegal, participando da abertura do 11º Fórum Social Mundial, Lula chamou de oportunistas os dirigentes das centrais por estes reivindicarem um aumento de R$ 580 para o mínimo, rompendo as regras pactuadas entre elas e o seu governo em 2007. Em outra oportunidade, quando do aniversário de 31 anos do PT, Lula avisou que entre o seu governo e o de não existe ruptura, mas uma linha de continuidades, obviamente sendo respeitadas certas idiossincrasias.


Três importantes reflexões

Toda essa polêmica nos permite tirar algumas importantes reflexões sobre o caráter e o papel do governo Dilma.

A primeira diz respeito a cobrança feita pelo governo junto às centrais em torno do respeito às regras acertadas em 2007 para o reajuste do mínimo, que agora as entidades sindicais estariam pretendendo desrespeitar. A nosso ver, estabelecer os aumentos tendo em vista a inflação do ano anterior e a média do PIB dos dois anos anteriores, não representa uma política capaz de valorizar o mínimo até este atingir o valor definido pelo Dieese, que para janeiro de 2011 deveria ser de R$ 2.194,76. Isso por duas razões. A primeira é que a política de controle da inflação é feita de acordo com os interesses das frações mais financeirizadas da burguesia brasileira. Estas impõem metas de inflação baixas que limitam o crescimento econômico, atingindo conseqüentemente a outra variável para o reajuste que é o PIB. A segunda razão é que o grau de internacionalização da economia brasileira a torna vulnerável aos humores da economia mundial. A grande dependência do Brasil das exportações, faz com que as crises econômicas atinjam a economia nacional, como foi em 2009, quando se registrou queda no PIB de -0,2%. Outros mecanismos de aferição para reajustar o salário mínimo poderiam ser utilizados, como o constante aumento da produtividade e do lucro médio das empresas. Para o ano de 2010 estes índices tinham previsão de crescimento, respectivamente, de mais de 6% e de cerca de 10%, no caso das empresas industriais.

Ainda cabe nessa primeira reflexão analisar mais detalhadamente a cobrança feita pelo governo junto às centrais de respeitarem as regras pactuadas em 2007 para o reajuste do mínimo. As centrais, ao acertarem como regra de reajuste a inflação mais a média do PIB, caíram em uma armadilha da qual agora tentam se livrar. As regras definidas entre elas e o governo Lula, como procuramos demonstrar acima, passam longe de uma política de valorização substancial do salário mínimo, até este conseguir atingir o valor estipulado pelo Dieese. Ao negociarem em nome dos trabalhadores prejudicaram-nos com regras de reajuste vinculadas a variáveis muito instáveis, principalmente no caso do PIB, que depende do funcionamento de uma economia capitalista sobre a qual os trabalhadores não possuem qualquer controle. À época do estabelecimento dessas regras, em 2007, venderam-nas aos trabalhadores como uma conquista que se mostra agora péssima para os interesses da maioria da população. Por seu lado, as centrais cobram do governo, de acordo com elas, o compromisso assumido publicamente por Dilma em um comício durante a última campanha eleitoral, de que o mínimo em 2011 teria um ganho real acima da inflação. As centrais, crentes de que seriam atendidas, mesmo se mostrando aliadas incondicionais do governo Lula e da candidatura Dilma, caíram no conto das promessas de campanha, pois a candidatura Serra (PSDB), havia prometido um mínimo de R$ 600,00, o que vinha constrangendo os apoiadores de Dilma no meio sindical.

Uma segunda reflexão em torno da polêmica do reajuste do mínimo, diz respeito ao papel a ser cumprido pelo governo Dilma no atual contexto mundial marcado pelos efeitos da crise econômica. Seu propósito, como demonstramos em texto anterior[1], é o de preparar a economia capitalista brasileira para os impactos da crise. Porém, as decisões tomadas atribuem às classes sociais proporções diferentes no preço a pagar pelos impactos da crise. Elas visam atenuar seus efeitos para o capital, sobrando para os trabalhadores um custo infinitamente maior. E como o reajuste do mínimo se encaixa nessa política? O governo Dilma, como fez o governo Lula, manterá fielmente seus compromissos com os interesses das frações hegemônicas da burguesia através da estabilidade econômica, leia-se manter baixa a inflação, e com um controle fiscal rigoroso. Para tanto, limitar o novo mínimo a R$ 545,00 é a única medida aceitável para controlar a inflação, impondo um freio ao consumo.

Ademais, como o reajuste do mínimo baliza os benefícios previdenciários e o seguro-desemprego, limitá-lo a R$ 545,00, mais do que um frio cálculo matemático, expressa quais classes sociais serão priorizadas no Orçamento Geral da União. Como os gastos do governo priorizam o pagamento da dívida pública[2], um aumento maior do mínimo, com seus impactos nos benefícios previdenciários, representa uma queda na parcela abocanhada pelos detentores de títulos da dívida pública[3]. O debate em torno do reajuste do mínimo, portanto, não é de ordem contábil (se as contas públicas fecham ou não), mas essencialmente político. E o governo Dilma, assim como Lula, fez sua opção que não é “pelos pobres”, mas pela defesa dos interesses do capital financeiro em detrimento dos interesses da maioria da população.

Uma última reflexão diz respeito à linha de continuidade entre os governos de Dilma e de Lula. Na polêmica em questão, as centrais acusam Dilma de romper com o governo Lula. O próprio ex-presidente tratou de desfazer essa confusão, mostrando que entre ele e sua pupila não há qualquer traço de descontinuidade. E de fato não há. As centrais, por oportunismo, se equivocam, para dizer o mínimo, ao acusarem Dilma de privilegiar os interesses do mercado e do capital financeiro em detrimento da produção, do salário e do emprego. A rigor o governo Lula fez o mesmo, não afetando os interesses do capital financeiro, mas acomodando no condomínio do bloco no poder os interesses de frações exportadores da burguesia e outras voltadas ao mercado interno.

A diferença entre ambos é que o governo Lula, por causa de uma conjuntura econômica internacional favorável às exportações, implementou uma política comercial externa agressiva, cujos gordos superávits comerciais obtidos geraram efeitos em cadeia no plano econômico interno. Essa situação se aliou à expansão do crédito ao consumidor, aumentando a produção, elevando o nível de emprego formal e permitindo ganhos salariais reais, que em certa medida ocorrem pela falta de força de trabalho qualificada no mercado. O conseqüente aumento da arrecadação fiscal gerado por essas políticas, combinado com o término do acordo com o FMI que engessava o uso de recursos públicos, também possibilitou ao Estado aumentar o seu gasto com obras de infra-estrutura para favorecer primordialmente as exportações e a produção industrial através do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), além de usar o BNDES no financiamento e aquisições por parte de grandes empresas capitalistas brasileiras, principalmente ramos industriais ligados às frações burguesas exportadoras, dando origem a grandes oligopólios nacionais voltados para a expansão externa, formando verdadeiras players tupiniquins. Tudo isso, porém, sem atingir os interesses do capital financeiro. Em linhas gerais esse é o traço específico do modelo econômico instituído pelos governos petistas, que ocorreu sem alterar a posição hegemônica de frações da burguesia, principalmente o capital financeiro, no bloco no poder.

Essa situação criou a ilusão, em camadas da classe trabalhadora e em setores do movimento sindical de perfil social-democrata e economicista, de que o governo Lula representaria uma ruptura com o predomínio exclusivo do capital financeiro e da lógica especulativa. Nada mais falso, pois reafirmamos que o que ocorreu em seu governo foi uma acomodação de interesses das frações exportadoras da burguesia e outras voltadas ao mercado interno, em uma conjuntura econômica mundial favorável.

O governo Dilma não pretende alterar os contornos gerais desse modelo econômico. Ocorre que seu mandato presidencial se passa em um outro contexto, onde se requer a aplicação de duras medidas de ajuste, mas que também passa pela necessidade de emitir sinais claros e inequívocos às frações hegemônicas de que seu governo não cederá às pressões “demagógicas” e populistas. E tais medidas incluem um novo ciclo de privatizações como o dos Correios e da Infraero, através da abertura do capital dessas empresas e feitas a toque de caixa, sem qualquer debate, com o recurso de Medidas Provisórias. No mesmo sentido se aponta para uma nova reforma regressiva da Previdência, com ameaça de novo aumento para idade e tempo de contribuição, prejudicando ainda mais os trabalhadores. Concomitante, setores industriais atingido pela concorrência de produtos similares importados serão premiados com uma redução na alíquota do INSS de 20% para 14%, diminuindo a arrecadação e servindo para o governo justificar uma nova reforma, por causa de um déficit inexistente.

É nesse contexto que todo o debate em torno do salário mínimo está inserido, com o governo encerrando unilateralmente as negociações e fincando pé na proposta de R$ 545,00. Mesmo com o reajuste de R$ 580,00 pleiteado pelas centrais sindicais passando longe do mínimo necessário estipulado pelo Dieese, o fato em si elucida o papel a ser jogado pelo governo Dilma que, como já indicamos acima, pretende aplicar medidas de ajuste ao modelo econômico implementado nos dois mandatos de Lula, cuja orientação é a de tornar mais suaves os efeitos da crise para o conjunto da burguesia, ao mesmo tempo em que os tornam mais duros aos trabalhadores.


A única saída é a luta e a unidade

Diante dessa situação, não resta outra saída aos trabalhadores a não ser o caminho da luta. Ao movimento sindical classista e combativo caberá organizar e estimular essa luta, buscando construir a unidade. Ainda predominam entre camadas da classe trabalhadora ilusões quanto ao governo Dilma, gerados pela expectativa de que ela mantenha o mesmo modelo inaugurado por Lula, dado seus efeitos superficialmente positivos do ponto de vista do salário, do emprego e do consumo. Isso ela o fará. Porém, com a diferença, e para isso ela foi eleita, de aplicar medidas de ajuste capaz de manter a base do modelo, mas que se refletirão em ataques aos interesses dos trabalhadores.

Para dar vazão à insatisfação que isso causará, o movimento sindical classista e combativo, bem como os partidos comprometidos com a luta revolucionária pelo socialismo, devem se preparar para canalizá-la rumo a uma luta que se proponha no plano imediato à derrota das medidas de ajuste, como condição essencial para lutas de amplitude cada vez maior.



Campinas, fevereiro de 2011.

NOTAS:


[1] EM UM MÊS DILMA JÁ MOSTROU A QUE VEIO, Renato Nucci Junior, http://www.pcb.org.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=2367:em-um-mes-dilma-ja-mostrou-a-que-veio&catid=65:lulismo&Itemid=84


[2] Para 2011, o volume global Orçamento Geral da União é da ordem de R$ 2,07 trilhões, garantindo R$ 678,5 bilhões (33%) para a rolagem da dívida pública.


[3] O professor Márcio Pochman, atual presidente do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), revelou que cerca de 20 mil famílias no Brasil detém 80% dos títulos da dívida pública.